SÃO PAULO - Quem diria que uma trama transmitida em 1989 permaneceria tão atual e ainda mais crítica e realista do que as novelas exibidas atualmente? Parece piada, mas “Vale Tudo”, escrita em uma época delicada da política brasileira (véspera das eleições de 1990, com vitória de Fernando Collor) conseguia alfinetar com maior ênfase a corrupção, falta de ética e caráter do que os folhetins atuais que, supostamente, foram conquistando liberdade no horário nobre da TV.
Mero engano. Talvez seja esse o segredo da reprise de “Vale Tudo”, no ar desde quatro de outubro pelo Canal Viva, e que novamente está atraindo a atenção do telespectador (e dos muitos que não puderam assistir à novela em seu ano de exibição), mesmo que signifique horas a menos de sono. Isso porque o horário da reprise é bem ingrato: às 0h45, com reexibição ao meio-dia seguinte.
Contudo, rever o desprezo de Odete Roitman, as trapaças de Maria de Fátima, as bebedeiras de Heleninha e os looks (ousados e muito copiados na época) de Solange nas telinhas está fazendo com que muitos espectadores-internautas durmam após as 2 da manhã, depois de assistirem a mais um capítulo e comentarem tudo no Twitter.
A ferramenta da web tem sido a principal aliada na volta de “Vale Tudo”. No horário da reprise, a tag #valetudo lidera os trending topics do site, com comentários que vão desde elogios sobre a qualidade e atualidade da trama, até comparações de má índole e corrupção política, elementos bem conhecidos pela sociedade até os dias de hoje.
“Já esperávamos o sucesso de ‘Vale Tudo’, e acreditamos que terá um desempenho ainda melhor ao longo da trama. Estamos muito felizes com a repercussão da novela, que temos acompanhado através da internet e redes sociais, como o Twitter, Fale Conosco, etc”, explica Letícia Muhana, diretora de grade do Canal Viva, ao Famosidades.
Letícia, juntamente com a equipe do Canal Viva, ainda não decidiu qual será a próxima novela desta faixa de horário, reservada aos clássicos da Globo, após o término da trama escrita por Gilberto Braga, Aguinaldo Silva e Leonor Basséres.
Apesar do claro sucesso, vale citar que o autor Aguinaldo Silva, que não quis comentar sobre o assunto, deixou claro que não quer dar ibope ao que “já passou”.
“Quem disse que vou pagar 36 ‘mirréis’ por mês pra ver uma novela que eu mesmo escrevi faz – meu Deus! – 22 anos! Por causa de Odete Roitman? Quem precisa de Odete Roitman quando já teve Perpétua, Altiva Pedreira, Maria Regina, Nazaré, e já tem programado pelo menos meia dúzia de outras?”, comentou o escritor em seu blog oficial.
Os números e fatos de “Vale Tudo” em 1989, porém, dão alguma ideia do porquê o folhetim ainda faz tanto barulho e merece ser visto e revisto seja naquela época, hoje, ou daqui a 10 anos. Em 6 de janeiro de 1989, a Rede Globo registrou espantosos 86 pontos no índice do Ibope durante o capítulo que relevaria o assassino de Odete Roitman.
Mistério envolvendo assassinatos em tramas sempre são bem atraentes aos olhos do público. “Passione”, de Silvio de Abreu, esquentou depois que todo o suspense envolvendo a morte de Saulo (Werner Schunemann) passou a integrar a história.
“Vale Tudo” foi considerada, mesmo após 22 anos, uma das melhores novelas que já foi ao ar pela emissora. Em 2002, uma produção em parceria da Globo com a Telemundo (braço hispânico da NBC), realizou o remake do folhetim lá fora, tornando-se o primeiro produto exportado pela emissora brasileira, voltado exclusivamente ao mercado externo.
“Acredito que ‘Vale Tudo’ resuma um pouquinho de tudo que estamos precisando hoje. Tivemos atores muito bons, boa produção, boa direção, uma ótima história. A novela é referência em qualidade, foi muito bem feita, e atribuo a isso seu sucesso”, explicou Beatriz Segall, intérprete da megera Odete Roitman ao Famosidades.
Além de Beatriz, Glória Pires, Regina Duarte, Antônio Fagundes, Reginaldo Faria, Lídia Brondi, Carlos Alberto Riccelli, Renata Sorrah, entre outros, compunham a trama que ditou modismos no final de 80 e implantou bordões como “sangue de Jesus tem poder”, fala clássica da personagem Raquel (vivida por Regina Duarte).
Ainda sobre os assuntos abordados, o folhetim inovou ao mostrar com realismo os problemas de uma alcoólatra de forma antes nunca exposta em rede nacional, com a conduta da personagem Heleninha, vivida por Renata (foto acima). Na época, “Heleninha” virou apelido para designar uma pessoa que bebia demais.
A função da personagem, no entanto, era claro: expor um problema e mostrar que ele tem solução. Na reta final, Heleninha se interna em um centro de Alcoólicos Anônimos (AA). A arte e o entretenimento cumpriram sua função social.
“Nós esperávamos aquela reação e identificação do público com os problemas da trama. Porque tudo foi muito bem pensando, acho que a qualidade da novela se justifica assim”, acrescentou Segall.
Temas vetados para a época e assuntos polêmicos mostram que os autores não tiveram receio na hora de passar por cima de alguns tabus. Por essa razão, “Vale Tudo” ainda atrai por sua atualidade. Se até hoje homossexualidade mal é debatida pelos folhetins, quem dirá em 1989. Mas foi sim. Claro que sob o véu da censura, mas a temática estava ali, ainda que de forma sutil.
Laís e Cecília, personagens de Cristina Pochaska e Lala Deheinzelin, eram homossexuais, e o relacionamento das duas aparecia de forma clara na trama. Intervenções da Censura Federal impediram, no entanto, que alguns diálogos fossem gravados. Apesar do tratamento indireto, o assunto foi parar na boca do povo.
“O público assistia o que tinha vontade de discutir. Uma novela que expõe o que você pensa gera uma cumplicidade com o espectador. ‘Olha só, a novela está discutindo uma coisa que me interessa’, ou então, ‘eu penso da mesma forma que o personagem tal’. E isso era um barato. A arte fazendo refletir, trazendo discussão, destruindo preconceitos”, definiu Cássia Kiss, intérprete da personagem Leila, para o Famosidades.
Leila, aliás, teve boa influência nos 86 pontos do Ibope que comentamos acima. Afinal, mesmo por engano, foi ela quem matou Odete Roitman e que incitou o público a não desgrudar os olhos da TV até que o mistério fosse solucionado.
“Foi uma loucura depois que descobriram que ‘eu’ era a assassina. No dia seguinte da revelação, eu sai na capa de todos os jornais brasileiros apontando uma arma. Tinha um mutirão de jornalistas na porta da minha casa querendo um depoimento meu. Pessoas que me paravam na rua fazendo ameaças. Fiquei bem assustada, mas hoje vejo aquela reação de forma interessante”, complementou Cássia.
O final de Leila também veio recheado de críticas. Mesmo tendo cometido homicídio, a personagem conseguiu fugir do país como se não devesse nada à justiça. Para Cássia, esse desfecho escancarou uma realidade do Brasil: a impunidade.
“Aquilo foi uma tradução da injustiça que enfrentamos dentro do país. Tem tanto bandidão que não sofre nenhuma consequência enquanto uma pessoa rouba um lápis e fica anos atrás das grades. Nossas leis são injustas, precisamos revê-las” . Neste ponto, “Vale Tudo” se mostra grandiosa em uma de suas funções: abrir os olhos do público.
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